Ricardo Lacerda
O necessário e inadiável ajuste fiscal vem
sendo instrumentalizado como uma insidiosa estratégia para debilitar o estado
de bem-estar duramente construído desde a redemocratização do país em 1985.
Ao
final do período de transição, a “pinguela” que segmentos mais poderosos e
influentes do establishment exigem que o governo Michel Temer atravesse em
direção a um modelo de funcionamento da economia menos regulado, muitas das
conquistas sociais elementares poderão ter sido sacrificadas em nome da
austeridade e de supostos ganhos de competitividade.
Para deixar claro, não se trata aqui de
defender ganhos extraordinários de categorias funcionais privilegiadas, que são mesmo
indefensáveis, e sim de questionar a desconstrução acelerada das políticas públicas
e do estado de bem-estar social consagrado na constituição de 1988. Há mais de um caminho para cortar despesas
como há mais de uma possibilidade de reduzir os custos de transação da economia
e aprimorar o funcionamento das instituições. E retirar direitos básicos da
cidadania absolutamente não equivale a tornar a economia mais eficiente.
Não significam a mesma coisa fazer o ajuste
fiscal e desestruturar as políticas públicas voltadas para as faixas mais pobres da população. Não significam a mesma
coisa sanear as contas previdenciárias e desvincular os benefícios
previdenciários do reajuste do salário mínimo, sacrificando as faixas de
população mais vulneráveis. Não significam a mesma coisa buscar a
sustentabilidade do sistema previdenciário adequando-o às mudanças demográficas
e ajustando-o às perdas causadas pela recessão e penalizar amplas faixas da
população e promover os interesses pouco disfarçados das instituições
financeiras em expandir a previdência complementar.
Não se equivalem reduzir a burocracia e adotar
outras medidas voltadas para melhorar o funcionamento das instituições e realizar
a toque de caixa uma reforma trabalhista que retira garantias básicas nas
relações de trabalho. Não significam a mesma coisa fazer valer o teto da
remuneração do setor público e promover uma reforma do ensino médio autoritária
e excludente.
Em suma, não se equivalem os custos
relacionados ao ajuste fiscal e os custos decorrentes de uma transição para um
modelo de sociedade ainda mais excludente do que a que temos no Brasil.
Os custos da transição
O processo de ajuste da economia brasileira
se iniciou no final de 2014 quando o ainda virtual ministro Joaquim Levy anunciou
medidas de correção nos preços administrados, como os de energia elétrica e combustíveis
e no câmbio, ao que se seguiu a adoção do seu programa de contenção nas
despesas públicas.
O impacto da inflação corretiva, potencializado
pelos efeitos da estiagem sobre os preços agrícolas, em termos de corrosão do poder
de compra das famílias foi tremendo: já no 1º trimestre de 2015 o consumo das
famílias despencou incríveis 2,8%, em relação ao último trimestre de 2014,
iniciando a série de sete trimestres de queda até o 3º trimestre de 2016, por
enquanto (ver Gráfico).
Ao longo de 2015, o consumo das famílias
acumulou uma queda, trimestre após trimestre, de 6,9%, perda que alcançou 9,8%
no acumulado até o 3º trimestre de 2016. Nenhum analista, no mais amplo espectro
político e teórico que possa ser considerado, antecipou uma reação de tal proporção.
O fato duro e real é que nem o ministro Levy, nem o ministro Barbosa, que o
sucedeu, tiveram a menor oportunidade de buscar o ajuste da economia. O esmagador
cerco político ao governo inviabilizou qualquer tentativa de reequilibrar as
contas publicas.
Diante da crise política, a Formação Bruta de
Capital Fixo (FBCF), que deixara de crescer desde o 3º trimestre de 2013, na sequência
das manifestações de ruas concentradas em junho e julho daquele ano, despencou impressionantes
18,4% ao longo de 2015, sempre na série dessazonalizada (ver Gráfico). A
recessão foi agudizada pela desestabilização do governo causando sofrimento
muito além do requerido a um ajuste fiscal em condições políticas menos
dramáticas.
Com a posse do novo governo em maio de 2016,
o Brasil vem promovendo a dolorosa transição que estamos presenciando e que
deve se estender pelos próximos anos. O descaminho da economia nos últimos anos
não pode ser divorciado do processo de desestabilização política.
Fonte: IBGE.CNT.
Diante da hegemonia do discurso antipopular e
excludente fortalecido na esteira da crise é impraticável estabelecer um
debate franco sobre caminhos alternativos para realizar o ajuste fiscal. Resta
apenas cavar trincheiras para preservar as conquistas mais significativas do estado
de bem-estar. E lembrar que novas hegemonias serão formadas ou reelaboradas. E que
nada será como antes, amanhã.
Publicado no Jornal da Cidade, 01 de janeiro de 2017