Praça São Francisco, São Cristovão- SE

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Praça São Francisco, São Cristovão-SE. Patrimônio da Humanidade

sábado, 24 de abril de 2021

O plano dos EUA para retomarem a liderança industrial

 Ricardo Lacerda*

Uma das definições centrais do governo Biden é o entendimento de que é imperativo para os EUA retomarem a liderança dos investimentos nos setores estratégicos, aqueles de elevados conteúdos tecnológicos e que deverão nortear a expansão da economia mundial nas próximas décadas. Dois segmentos de atividades receberam atenção especial no American Job Plan, o plano de desenvolvimento econômico e social para os próximos oito anos: a produção de veículos elétricos, atividade em que o país teria acumulado defasagem significativa em relação à indústria chinesa; e, aquilo que o documento chama de tecnologias críticas para competitividade futura e para a segurança nacional, abrangendo as novas tecnologias de inteligência artificial, a biotecnologia e a computação, mais especificamente a produção de semicondutores e as tecnologias de comunicação avançada (5G e 6G) que constituirão as estradas futuras do tráfego de informações em todo mundo.

Made in América

O American Job Plan almeja não apenas que os EUA liderem o desenvolvimento dessas novas tecnologias como entende ser necessário manufaturar no território norte americano, ou no máximo em países que são tradicionais parceiros da aliança ocidental, aqueles bens que formam os elos essenciais das cadeias de suprimento dessas atividades.

A atenção dada no plano para a fabricação interna, o recorrente apelo para o Made in America, assume papel central na estratégia de desenvolvimento e significa uma importante virada na compreensão sobre o papel crucial da indústria manufatureira, tanto para impulsionar o crescimento econômico de longo prazo, quanto para gerar internamente os empregos de qualidade que foram perdidos com a migração da atividade manufatureira para o leste asiático, desde os anos noventa do século passado.

Retomada do Estado de Bem-Estar Social

Está explícito no American Job Plan o objetivo de retomar, ainda que em versão atualizada, a economia do bem-estar social dos trinta anos gloriosos (1945-1975), que foi desmontada ao longo das décadas de globalização desregulada e da hegemonia da ideologia neoliberal. Disseminou-se em amplos setores da sociedade norte americana a percepção de que a economia neoliberal fracassou rotundamente em promover crescimento econômico relativamente estável, sustentável em termos ambientais e inclusivo em termos sociais. Pelo contrário, de forma célere, as desigualdades de renda se ampliaram nos anos de hegemonia neoliberal e os mecanismos de solidariedade social foram fragilizados.

A versão contemporânea do estado de bem social é apresentada como o Green New Deal, um novo contrato social em que as questões ambientais assumem papel central, mas que é herdeira inequívoca dos programas sociais da era Roosevelt (New Deal) -Eisenhower e da Great Society, de Lyndon Johnson.

Perda da liderança industrial

Desde os anos noventa do século passado, a China vem ganhando participação em ritmo acelerado na produção mundial da indústria manufatureira. Segundo estimativa da UNIDO- Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial, a participação da China no valor adicionado da indústria manufatureira saltou de 4%, em 1990, para 31,7%, em 2020, enquanto a indústria manufatureira dos EUA viu sua participação se retrair no período de 21,8% para 16% (Ver Gráfico).

A perda de participação norte americana na produção mundial de manufaturas, em processo similar ao que se verificou nas maiores economias ocidentais, não decorreu tão somente do crescimento mais acelerado do PIB da China e de outros países do leste asiático. Refletiu também a perda da participação da indústria manufatureira na própria economia norte americana, recuando, segundo estimativa da OCDE, de 16,7% do valor adicionado, em 1997, para 11,3%, em 2019. Ou seja, nos trinta e dois anos que separam 1997 e 2019, a indústria manufatureira norte americana perdeu cerca de 1/3 de sua participação na riqueza nacional.

 

                                    Fonte: UNIDO- Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial

 

O incentivo à retomada da produção interna da indústria manufatureira é componente fundamental na estratégia do Governo Biden para construir o novo estado de bem-estar social. O ponto central parece ser refazer os vínculos, que foram debilitados nos anos de hegemonia de economia desregulada, entre crescimento da produtividade econômica, geração de bons empregos, aumento da arrecadação tributária e ampliação do estado de bem-estar social. O desafio se situa em compatibilizar tais objetivos com o papel disruptivo das novas tecnologias de informação e comunicação.

A aposta parece estar em mais e não em menos regulamentação das relações de trabalho e na organização da produção por parte do estado. Os anos de supremacia das finanças em relação à produção parecem ter ensinado que a atividade industrial importa e que ela cumpre papel central na articulação entre o incremento da produtividade, geração de bons empregos e fortalecimento do estado de bem-estar.

 

Professor do programa de mestrado de economia da UFS e integrante da ABED- Associação Brasileira de Economistas pela Democracia

sábado, 17 de abril de 2021

Lições do plano de retomada do crescimento do Governo Biden

Ricardo Lacerda

 

Os analistas econômicos ao redor do mundo acompanham com enormes expectativas os desdobramentos do plano de investimentos de longo prazo submetido pelo governo do presidente Biden ao congresso dos EUA. Intitulado American Job Plan, caso aprovado integralmente pelo parlamento daquele país, vai adicionar em oito anos cerca de US$ 2,3 trilhões em investimentos de caráter estruturante ao já aprovado pacote emergencial de US$ 1,9 bilhões, o American Rescue Plan. As expectativas do mundo em relação ao plano proposto decorrem em parte da magnitude dos recursos envolvidos, mas sua importância é ainda maior por conta da mudança de rota a que se propõe em termos da concepção da atuação que o estado deve ter na economia e da centralidade que a questão ambiental assume, particularmente da mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, na estratégia de desenvolvimento que foi elaborada.

O American Job Plan é apresentado como sendo uma oportunidade de reimaginar e reconstruir uma nova economia, em que o investimento público retomaria parcialmente o espaço perdido enquanto parcela do PIB, desde o apogeu da era keynesiana de bem-estar social nos anos sessenta do século passado. O plano se fundamenta na constatação de que a economia norte americana, a maior do mundo, vê sua liderança ameaçada por décadas de desinvestimentos em infraestrutura econômica, em estradas, saneamento, energia e telecomunicações, ao tempo que perdeu a capacidade de gerar internamente bons empregos, ou seja, empregos de qualidade com remunerações compatíveis e direitos assegurados. O vínculo explícito entre a retomada do poderio industrial (enfraquecido nas últimas décadas), a expansão dos investimentos nos setores estratégicos, em que a questão da mudança climática aparece como desafio e oportunidade, e a geração de emprego de qualidade é uma das bases de sustentação do plano de desenvolvimento.

Competição com a China

A sombra da perda de competitividade em relação à China percorre o diagnóstico American Job Plan do início ao fim. Está expressa, entre outras passagens, quando o documento constata que a economia norte americana vem perdendo posições em relação às principais economias concorrentes em dimensões tão cruciais quanto Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), manufatura e recursos humanos. Ver a versão integral do plano em https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/03/31/fact-sheet-the-american-jobs-plan/.

A mudança de rota de desenvolvimento presente na proposta assume importância especial quando o documento reconhece explicitamente que as forças de mercado (de oferta e demanda) não têm se mostrado capazes de fazer o redirecionamento dos investimentos para que a economia norte americana recupere o atraso em relação aos principais países concorrentes.

Falha de mercado e o investimento público

Em entrevista postada em podcast de 09 de abril do colunista Ezra Klein, do jornal New York Times, o principal conselheiro econômico do presidente Biden, Brian Deese,  elenca razões práticas para defender a liderança dos investimentos públicos como ferramenta necessária para retomar a competitividade da economia dos EUA. Sua argumentação se assemelha às abordagens de falhas de mercado, especificamente do problema da coordenação dos investimentos. Brian Deese argumenta em determinada passagem da entrevista que o setor privado não tem, por si só, como alavancar os investimentos necessários para instalar uma rede ampla de estações de recarga de veículos elétricos nas rodovias do país. Neste, e em outros casos, o investimento público teria que partir na frente para sinalizar e, assim, debloquear as oportunidades para o setor privado. De forma similar, os investimentos públicos são imprescindíveis para reduzir a vulnerabilidade e a dependência de importações de semicondutores e em outros segmentos estratégicos para retomada do poderio industrial.

Na entrevista, o principal conselheiro econômico de Joe Biden deixa clara a necessidade de ser pragmático e, assim, se libertar das amarras ideológicas vinculadas à suposta supremacia das economias de livre mercado.  Em determinada passagem ele reconhece que a economia chinesa, que não opera com base no livre mercado, vem enfrentando os desafios em diversos dos segmentos mais importantes da atividade econômica com maior competência do que os EUA: está liderando a construção de trens de alta velocidade, enquanto os EUA ainda estão patinando nessa área;   está aumentando os investimentos em P&D em setores estratégicos como parcela do PIB; e, finalmente, a China vem planejando meticulosamente esses investimentos há mais de uma década, enquanto os EUA viram sua infraestrutura se deteriorar progressiva e perigosamente.

Ecossistema produtivo e inovativo

Deese conclui, em linha com as abordagens econômicas mais pragmáticas (e heterodoxas), que o fundamental é fazer o máximo possível em termos de fortalecer um ecossistema de inovação nos setores estratégicos, tarefa que não pode ser deixada ao encargo da iniciativa privada, sempre destacando a complementaridade entre os investimentos públicos e os investimentos ao encargo das empresas, na perspectiva de que é necessário o governo fazer o investimento inicial estratégico e lançar os alicerces dessa transformação para desbloquear o potencial do capital privado. O áudio e a transcrição da entrevista estão acessíveis em https://www.nytimes.com/2021/04/09/opinion/ezra-klein-podcast-brian-deese.html.

O mais importante na proposição do American Job Plan para nós brasileiros são as implicações que a sua implantação deverá ter em termos de concepção do papel dos investimentos públicos e da centralidade das questões ambientais nas políticas de desenvolvimento mundo afora. Para além das especificidades dos problemas nacionais, caso o plano não seja bloqueado ou esvaziado pela oposição, ele significará uma mudança de grande magnitude nas estratégias de desenvolvimento. Diante da falta de perspectivas que vive o Brasil nos dias de hoje, sem dúvida, o seu êxito traria um grande alento, um sopro de esperança de que dias melhores virão. 

 




*Ricardo Lacerda

Professor do programa de mestrado de economia da UFS. Assessor Econômico da Secretaria Geral de Governo de Sergipe e integrante da ABED- Associação Brasileira de Economistas pela Democracia

 


 

 

 


domingo, 11 de abril de 2021

Keynes está de volta, para a felicidade geral

 Ricardo Lacerda

 O debate econômico atual no Hemisfério Norte não deixa margem à dúvida, está em pleno andamento uma importante virada sobre a compreensão do papel do estado no desenvolvimento econômico e social que poderia ser sintetizada na seguinte ordem do dia: o keynesianismo está de volta. Depois de 40 anos de hegemonia sufocante da perspectiva neoliberal, os fracassos reiterados do sistema de mercados crescentemente desregulados em entregar as promessas de promover crescimento econômico sustentado, estável, inclusivo em termos socais e expansivo em direção a novas áreas do globo terrestre exauriram as suas possibilidades.

A agonia do sistema de mercados desregulados se iniciou ainda em 2008 com o espocar da crise financeira em que naufragou a economia mundial. Todavia, naquele momento, as lideranças políticas dos países ricos e os dirigentes das agências multilaterais de desenvolvimento titubearam em realizar as mudanças necessárias em direção a uma nova etapa de maior regulação da economia mundial e sucumbiram mais uma vez à ideologia neoliberal e aos interesses dos detentores da riqueza financeira. Economistas notáveis como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos premiados pelo Prêmio Nobel, que apontavam incansavelmente os fracassos da globalização desregulada em promover crescimento justo socialmente e sustentado econômica e ambientalmente, eram vozes minoritárias e suas mensagens não ultrapassavam os muros das universidades ou dos limites dos movimentos populares mais engajados socialmente.

As insatisfações com o sistema neoliberal foram se acumulando com a deterioração crescente do mercado de trabalho nos países centrais, que se expressava no incremento exponencial das relações de trabalho precarizadas, no crescimento do número de pessoas imersas na situação de pobreza e no imenso contingente de pessoas residindo nas ruas que se formou nos principais centros urbanos dos países ricos, muito especialmente naquele país que simbolizava e liderava ideologicamente a propagação mundial das políticas neoliberais. O debate sobre as crescentes desigualdades de renda entre ricos e pobres, que emergiu a partir dos trabalhos do economista francês Thomas Piketty, foram essenciais para assentar nas mesas acadêmicas e na mente da população a injustiça crescente do sistema de mercados desregulados.

Se a insatisfação crescente com a globalização financeira propiciou a emergência de líderes populistas de extrema direita nos diversos continentes, tendo o presidente norte americano Donald Trump como representante maior, esse ciclo político, aparentemente, começou a se esgotar.

Plano Biden

A manifestação mais consistente e robusta da virada keynesiana foi, sem sombra de dúvidas, o recente pacote de estímulos do presidente Joe Biden, dos EUA, que alcançou a notável soma de dois trilhões de dólares já aprovados pelo congresso para ações emergenciais e mais US$ 2,25 trilhões, em oito anos, voltados para mudanças estruturais. Antes de sua submissão ao congresso o conjunto de medidas emergenciais sofreu ataques diversos, com destaque para as manifestações incisivas do economista Lawrence Summers, exatamente aquele assessor econômico que fez o então presidente Obama titubear em adotar medidas mais duras de enfrentamento ao poderio do setor financeiro. Dessa vez, todavia, o presidente recém-empossado, Joe Biden, não se deixou impressionar pela mensagem alarmista do economista de que um pacote tão robusto teria impactos inflacionários desestabilizadores da economia. A secretária do tesouro americano, a experimentada economista Janet Yellen, presidente do Banco Central (Federal Reserve) na administração Obama, descartou recuar e afirmou sem rodeios que, dessa vez, se o governo tivesse que errar seria para mais e não para menos, como aconteceu em 2008.

O novo pacote voltado para o longo prazo contempla investimentos de US$ 750 bilhões em infraestrutura produtiva em estradas, ferrovias e transmissão de energia, US$ 189 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) tecnológico, avança em direção ao estímulo a setores industriais considerados estratégicos e mais US$ 100 bilhões em infraestrutura de internet de banda larga. Aproximando-se da plataforma dos ambientalistas, contempla investimentos em energias renováveis, veículos elétricos e saneamento básico em uma revirada ambiciosa em termos de atuação do governo na área econômica. Como até mesmo lideranças do setor financeiro e de empresas da mídia corporativa que costumam se alinhar a esse segmento reconhecem,  as novas medidas anunciadas pela administração Biden significam uma virada de grande alcance na política econômica, não apenas porque enfrentam os postulados das medidas fiscalistas que colocavam a austeridade fiscal no altar da sacralidade, como desenham um conjunto de linhas de ação que reposiciona o papel do estado no desenvolvimento econômico e social do país.  

Efeito demonstração

Não haverá como evitar os impactos políticos do efeito demonstração da iniciativa norte americana sobre a orientação política econômica dos países ricos e mesmo dos países em desenvolvimento como o nosso, apesar dos mugidos e do aparente pouco caso de economistas brasileiros vinculados ao mercado financeiro e de seus porta vozes na mídia corporativa, como retratado entre nós no editorial do jornal Folha de São Paulo, de 04 de abril de 2021. O referido editorial, apesar de reconhecer que o Megapacote de Biden visa revigorar o capitalismo dos EUA, em seguida vaticina que o Brasil não teria a oportunidade de seguir caminho similar.

Do ponto de vista brasileiro, a virada keynesiana que se apresenta no Hemisfério Norte abre uma senda de luta interna para se contrapor não apenas ao desmonte do estado promovido pelas políticas neoliberais que foi retomado em ritmo acelerado depois do golpe parlamentar de 2016.  A possibilidade aberta pela virada na política econômica nos EUA vai além disso, cria condições concretas para a construção de um novo pacto político e social em favor de uma nova etapa de desenvolvimento de forte conteúdo desenvolvimentista e de inclusão social, em linha com as novas demandas da sociedade, de afirmação do país interna e externamente. Essa afirmação deve contemplar não apenas o desenvolvimento produtivo, por meio da capacitação tecnológica, científica e empresarial, como a construção de uma sociedade mais homogênea, menos desigual, em uma nova perspectiva na relação com os recursos naturais e um aprofundamento interno nas relações democráticas. Sim, Keynes está de volta na política econômica e social e chegará ao Brasil. Sim, retornará para a felicidade geral da nação..







Artigo publicado no Jornal da Cidade, de Aracaju, em 11/04/2021