Praça São Francisco, São Cristovão- SE

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Praça São Francisco, São Cristovão-SE. Patrimônio da Humanidade

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O que se move e o que não se move depois da greve dos caminhoneiros



Ricardo Lacerda                    

Difícil falar sobre o comportamento do nível de atividade quando as instituições nacionais se encontram sob ameaça, diante do risco iminente da eleição de um candidato a presidente que já deu demonstrações cabais de falta de compromisso com as regras democráticas e cuja campanha se assenta na incitação ao ódio e à intolerância.
Os amplos setores da sociedade que atualmente apoiam o candidato que vocifera slogans chamando à ordem provavelmente se defrontarão no próximo ano, caso se confirme a sua vitória, com enormes decepções, quando as frustrações nos mais diversos campos começarem a se acumular. Oremos, pois, para que dê tempo para consertar os estragos que serão necessariamente produzidos por uma gente que se mostra despreparada para a convivência democrática e ainda mais para governar, nas mais diversas áreas, inclusive na economia.
Façamos uma pausa na política, o que não é fácil diante das preocupações reinantes, para tentar avaliar os últimos indicadores de atividade. Os dados referentes ao mês de agosto, publicados nos últimos dias, sinalizaram que os impactos mais diretos da greve dos caminhoneiros começam a ser dissipados.
Setores de atividade
Os números de maio e, em alguns setores, de junho, foram tão fora dos padrões que há muita dificuldade para avaliar exatamente o que os resultados dos meses seguintes significam em termos normalização da produção e de crescimento: o comércio varejista apresentou crescimento de 1,3% em agosto, em relação ao mês de julho, depois de três meses de recuo, não chegando, todavia, a repor, na série livre de feitos sazonais, o nível de atividade anterior à paralisação nacional dos rodoviários.  
A indústria de transformação já havia recuperado em junho o nível de atividade perdido em maio, mas desde então não apresenta novos incrementos. O setor de serviços, o segmento que mais retardava o crescimento entre os diversos setores de atividade, vem apresentando fortes oscilações mensais desde maio e no mês de agosto apresentou resultado relativamente robusto, com crescimento de 1,2% em relação a julho na série livre de feitos sazonais.
Na comparação com igual mês do ano anterior, o volume de vendas do varejo apresentou crescimento robusto em agosto, ainda que as taxas tenham se apresentado muito dispersas entre os setores. Essa também tem sido a marca das atividades de serviços, forte dispersão entre as taxas de crescimento entre os subsetores, revelando a fragilidade da recuperação da atividade.
A retomada das atividades industriais, que se iniciou mais cedo do que no comércio e nos serviços, tem se mostrado mais robusta, ainda que alguns subsetores de bens de consumo não duráveis, como têxteis, calçados e alimentos industrializados mantenham produções rebaixadas, além da fabricação de materiais para a construção civil.
Cabe alertar que permanecem as dificuldades em avaliar o significado dos resultados mais recentes; o quanto do incremento nos últimos meses se deve à reposição dos volumes de produção e vendas perdidos durante a greve dos caminhoneiros e o quanto se deve ao retorno à trajetória de crescimento, mesmo modesto, interrompido nos meses de maio e junho.
Desconfio que a interpretação dos resultados na série livre de efeitos sazonais mais recentes ficou relativamente comprometida pelos números tão adversos de maio e junho. Nesse sentido, observar a série de indicadores sem o ajuste sazonal, na comparação com igual período do ano anterior, notadamente os resultados acumulados ao invés de mensais, permite captar melhor o comportamento recente do nível de atividade.
Trimestre e doze meses
Os resultados do mês de agosto são os primeiros que permitem calcular as taxas de crescimento trimestrais sem a maior parte do impacto direto da greve dos caminhoneiros.
Na comparação com igual trimestre de 2017, o crescimento do volume de vendas do varejo no trimestre completado em agosto alcançou 1,5%, quando antes da paralisação nacional estava rodando quase 4%, em relação a igual trimestre do ano anterior. Em doze meses acumulados as diferenças são bem atenuadas, com índices de crescimento do volume de vendas no varejo similares do período anterior à paralisação nacional, ainda que as vendas no varejo em alguns subsetores permaneçam rebaixadas, como moveis e vestuário e calçados.
Na indústria de transformação, a produção física em doze meses cresceu 2,2%, em relação a igual período anterior, bem inferior ao ritmo anterior à paralisação (cerca de 4%), e muitos dos segmentos de bens de consumo não duráveis continuam com a produção rebaixada. Finalmente, as atividades de serviços, que antes da paralisação nacional rodavam abaixo dos resultados de 2017, apresentaram resultado notavelmente favorável no trimestre encerrado em agosto de 2018, com destaque para os segmentos de transporte e armazenagem.
Para finalizar, o gráfico apresentado traz a evolução das taxas trimestrais e em doze meses do crescimento do Índice de Atividade do Banco Central (IBC-BR), em relação a iguais períodos anteriores. Nas duas séries, o crescimento do nível de atividade da economia brasileira já vinha desacelerando desde o último trimestre de 2017, situação que se agravou no 2º trimestre de 2018.
Após os impactos a paralisação dos caminhoneiros, a economia brasileira, aparentemente, retoma a atividade, com ritmo de incremento de cerca de 1,5%, com uma dispersão relativamente grande entre setores, subsetores de atividade e regiões. O mercado de trabalho continua eliminando empregos formais. A melhor aposta na recuperação seria um forte estímulo aos investimentos públicos na construção civil. Mas as perspectivas eleitorais definitivamente não apontam para a pacificação política da nação.

Fonte: BCB

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Os escafandristas

Ricardo Lacerda


Nunca tive a veleidade de convencer ninguém a votar em candidato ou partido A ou B. Sempre entendi que cada eleitor, a partir de suas referências, faz sua própria leitura sobre a realidade e se posiciona, independentemente de idade e nível de escolaridade. E depois suporta as consequências de suas escolhas. Converso sim sobre as opções existentes com amigos e pessoas com quem me relaciono.
Nos dias que antecedem as eleições, nem a isso me proponho. Escrevo o presente artigo para registro futuro; não o futuro próximo de 2019 ou 2020 e sim o futuro dos escafandristas que, como nos versos da música de Chico Buarque Holanda, depois de “milênios, milênios no ar (…) virão explorar seu quarto, suas coisas, suas almas, desvãos (…) vestígios de estranha civilização”.
Desencontros
Aqueles que nesse futuro distante se debruçarem sobre a realidade do Brasil de 2018 certamente terão dificuldades para compreender o que se passava nesses tempos tumultuados, marcados pelos desencontros. Como uma sociedade passou tão celeremente de uma euforia e ganhou confiança sobre futuro durante o mais abrangente e socialmente inclusivo ciclo de crescimento de sua história, entre 2004 e 2012; realizou gigantescas manifestações de rua, em 2013, quando as melhorias sociais começaram a mostrar os seus limites; e se afundou em parafuso desde 2015, afastando a presidente eleita, em 2016, alguns acreditando que novos tempos viriam, e se defrontou com a falta de perspectivas e o desencanto nos últimos dois anos?
Claro que uma parcela importante dos problemas atuais tem raízes no exterior, com a crise financeira de 2008 nos Estados Unidos; a contaminação da Europa, em 2011; o comprometimento do crescimento do nosso principal parceiro comercial, a China, em 2013. Mas isso é apenas uma parte do enredo, importante no contexto geral, mas insuficiente para entendermos a dimensão do impasse em que nos encontramos. Sim, a forma e a intensidade com que reagimos aos ventos externos foram muito próprias e revelam muito da natureza das nossas mazelas internas.
Há, pelo menos, duas ordens de questões que emergiram quando a economia brasileira começou a perder o ímpeto de crescimento: uma de natureza econômica e social e outra de natureza cultural e moral. Não tenho competência para falar das últimas mas, ainda assim, irei me arriscar a tecer algumas ligeiras reflexões, porque é necessário considerá-las para entender o tamanho da enrascada em que nos metemos.
Na dimensão dos costumes, a agenda de direitos humanos avançou em ritmo acelerado nos últimos dez anos, contemplando o respeito à diversidade, reconhecimento de direitos de minorias, estabelecimento de cotas em concursos públicos, questões de gênero, sexualidade e novos arranjos conjugais. A velocidade com que essa pauta andou, ainda que haja muito caminho a considerar, assustou muitos segmentos da sociedade, abrindo espaço para o oportunismo exacerbado de líderes religiosos que buscaram se capitalizar, no sentido literal e no metafórico, com a reação da sociedade que, se não pode ser classificada de natural, pode ser encarada como compreensível. Os escândalos de corrupção foram mais um ingrediente relevante na percepção de descontrole e de degradação geral dos costumes.
Na dimensão econômica e social, o fim do ciclo de crescimento econômico e de forte inclusão social, repito, o mais importante da história do Brasil, fez aflorar ressentimentos que se acumulavam entre segmentos da classe média tradicional que perdiam relativamente posição social com a significativa ascensão dos pobres, mesmo que os segmentos médios também estivessem melhorando de vida em termos absolutos. De outra parte, a deflagração da crise econômica deu partida à disputa pela distribuição dos custos do necessário e inadiável ajuste fiscal. Nessa contenda, literalmente, quem pode mais paga menos, ainda que, com a conflagração interna, os custos sociais estejam se revelando muito maiores do que precisariam ser.
As alianças
As alianças sociais que se formaram nas disputas internas, e que estão refletidas na atual corrida eleitoral, são estarrecedoras, apesar de não serem inusitadas. Como, cargas d’água, os chamados liberais, que defendem a menor presença do estado no funcionamento da economia, se aliam aos setores mais conservadores em termos de costumes, em uma aliança sombria que corteja redução de direitos sociais e estímulos à repressão aos novos padrões e costumes? Como os defensores do livre mercado abrem mão dos mais comezinhos padrões de civilidade e passam a apoiar um candidato sustentado por verdadeiras milícias, pela bancada da bala e que defende a discriminação das mulheres e a perseguição implacável a minorias que podem representar 5% ou mais da população?
Apesar das especificidades dos nossos descaminhos, há sim lições a aprender com a comparação do que acontece em outros países. Seja nos Estados Unidos, seja na Europa, seja em quase todos os demais países da Nuestra América, as divisões internas na população se aguçaram nos últimos anos.
Tais divisões tendem a emergir em períodos de crise econômica e social que muitas vezes são também momentos de grandes transformações, tanto na dimensão produtiva e social, quanto nas dimensões dos costumes.
Para além das diferenças arraigadas sobre o melhor caminho para enfrentar a crise fiscal, a respeito do tamanho adequado do estado nacional e sobre qual seria a melhor estratégia de desenvolvimento econômico e social, é necessário recusar o obscurantismo e dizer não a opções que coloquem o país na rota do retrocesso econômico e social.
Os escafandristas se perguntarão no futuro que estranho pacto se formou para fechar as portas de acesso dos mais pobres à melhoria de vida e legitimou a violência e a perseguição às minorias que buscavam apenas serem reconhecidas como parte de uma sociedade diversa. Há sim pactos não legítimos em outras alianças, como a recusa de abrir mãos de privilégios estabelecidos, mas nada tão assustador quanto ao que no referimos. Até o fim a minha palavra de ordem para ressoar no futuro será #EleNão.