Ricardo Lacerda
Nunca
tive a veleidade de convencer ninguém a votar em candidato ou partido A ou B.
Sempre entendi que cada eleitor, a partir de suas referências, faz sua própria
leitura sobre a realidade e se posiciona, independentemente de idade e nível de
escolaridade. E depois suporta as consequências de suas escolhas. Converso sim
sobre as opções existentes com amigos e pessoas com quem me relaciono.
Nos
dias que antecedem as eleições, nem a isso me proponho. Escrevo o presente
artigo para registro futuro; não o futuro próximo de 2019 ou 2020 e sim o
futuro dos escafandristas que, como nos versos da música de Chico Buarque
Holanda, depois de “milênios, milênios no ar (…) virão explorar seu quarto,
suas coisas, suas almas, desvãos (…) vestígios de estranha civilização”.
Desencontros
Aqueles
que nesse futuro distante se debruçarem sobre a realidade do Brasil de 2018
certamente terão dificuldades para compreender o que se passava nesses tempos
tumultuados, marcados pelos desencontros. Como uma sociedade passou tão
celeremente de uma euforia e ganhou confiança sobre futuro durante o mais
abrangente e socialmente inclusivo ciclo de crescimento de sua história, entre 2004
e 2012; realizou gigantescas manifestações de rua, em 2013, quando as melhorias
sociais começaram a mostrar os seus limites; e se afundou em parafuso desde
2015, afastando a presidente eleita, em 2016, alguns acreditando que novos
tempos viriam, e se defrontou com a falta de perspectivas e o desencanto nos
últimos dois anos?
Claro
que uma parcela importante dos problemas atuais tem raízes no exterior, com a
crise financeira de 2008 nos Estados Unidos; a contaminação da Europa, em 2011;
o comprometimento do crescimento do nosso principal parceiro comercial, a
China, em 2013. Mas isso é apenas uma parte do enredo, importante no contexto
geral, mas insuficiente para entendermos a dimensão do impasse em que nos
encontramos. Sim, a forma e a intensidade com que reagimos aos ventos externos
foram muito próprias e revelam muito da natureza das nossas mazelas internas.
Há,
pelo menos, duas ordens de questões que emergiram quando a economia brasileira
começou a perder o ímpeto de crescimento: uma de natureza econômica e social e
outra de natureza cultural e moral. Não tenho competência para falar das
últimas mas, ainda assim, irei me arriscar a tecer algumas ligeiras reflexões,
porque é necessário considerá-las para entender o tamanho da enrascada em que
nos metemos.
Na
dimensão dos costumes, a agenda de direitos humanos avançou em ritmo acelerado
nos últimos dez anos, contemplando o respeito à diversidade, reconhecimento de
direitos de minorias, estabelecimento de cotas em concursos públicos, questões
de gênero, sexualidade e novos arranjos conjugais. A velocidade com que essa
pauta andou, ainda que haja muito caminho a considerar, assustou muitos
segmentos da sociedade, abrindo espaço para o oportunismo exacerbado de líderes
religiosos que buscaram se capitalizar, no sentido literal e no metafórico, com
a reação da sociedade que, se não pode ser classificada de natural, pode ser
encarada como compreensível. Os escândalos de corrupção foram mais um
ingrediente relevante na percepção de descontrole e de degradação geral dos
costumes.
Na
dimensão econômica e social, o fim do ciclo de crescimento econômico e de forte
inclusão social, repito, o mais importante da história do Brasil, fez aflorar
ressentimentos que se acumulavam entre segmentos da classe média tradicional
que perdiam relativamente posição social com a significativa ascensão dos
pobres, mesmo que os segmentos médios também estivessem melhorando de vida em
termos absolutos. De outra parte, a deflagração da crise econômica deu partida
à disputa pela distribuição dos custos do necessário e inadiável ajuste fiscal.
Nessa contenda, literalmente, quem pode mais paga menos, ainda que, com a
conflagração interna, os custos sociais estejam se revelando muito maiores do
que precisariam ser.
As alianças
As
alianças sociais que se formaram nas disputas internas, e que estão refletidas
na atual corrida eleitoral, são estarrecedoras, apesar de não serem inusitadas.
Como, cargas d’água, os chamados liberais, que defendem a menor presença do
estado no funcionamento da economia, se aliam aos setores mais conservadores em
termos de costumes, em uma aliança sombria que corteja redução de direitos
sociais e estímulos à repressão aos novos padrões e costumes? Como os
defensores do livre mercado abrem mão dos mais comezinhos padrões de civilidade
e passam a apoiar um candidato sustentado por verdadeiras milícias, pela
bancada da bala e que defende a discriminação das mulheres e a perseguição
implacável a minorias que podem representar 5% ou mais da população?
Apesar
das especificidades dos nossos descaminhos, há sim lições a aprender com a
comparação do que acontece em outros países. Seja nos Estados Unidos, seja na
Europa, seja em quase todos os demais países da Nuestra América, as divisões
internas na população se aguçaram nos últimos anos.
Tais
divisões tendem a emergir em períodos de crise econômica e social que muitas
vezes são também momentos de grandes transformações, tanto na dimensão
produtiva e social, quanto nas dimensões dos costumes.
Para
além das diferenças arraigadas sobre o melhor caminho para enfrentar a crise
fiscal, a respeito do tamanho adequado do estado nacional e sobre qual seria a
melhor estratégia de desenvolvimento econômico e social, é necessário recusar o
obscurantismo e dizer não a opções que coloquem o país na rota do retrocesso
econômico e social.
Os escafandristas
se perguntarão no futuro que estranho pacto se formou para fechar as portas de
acesso dos mais pobres à melhoria de vida e legitimou a violência e a
perseguição às minorias que buscavam apenas serem reconhecidas como parte de
uma sociedade diversa. Há sim pactos não legítimos em outras alianças, como a
recusa de abrir mãos de privilégios estabelecidos, mas nada tão assustador
quanto ao que no referimos. Até o fim a minha palavra de ordem para ressoar no
futuro será #EleNão.
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