Ricardo Lacerda
O chamado ajuste econômico é apresentado como
um ajuste fiscal, de redução dos gastos do governo, com o propósito de ampliar
o superávit primário e de estancar o crescimento da dívida bruta do setor
público enquanto proporção do PIB. Não deixa de sê-lo, mas ele é principalmente
um ajuste dos gastos das famílias. A contenção dos gastos públicos é, sob certo
sentido, apenas o veículo que vai entregar a compressão do poder de compra das
famílias. Isso já foi feito anteriormente. Na verdade, é feito periodicamente e
está associado não apenas às nossas mazelas internas como também à inserção subalterna
de nossa economia no sistema internacional. Outros países periféricos passam
por agruras semelhantes.
Em geral a compressão dos gastos das famílias
tem como causa primeira a deterioração do cenário externo. Após um período,
mais longo ou mais curto, com maior ou menor intensidade, em que a política
econômica procura se contrapor aos efeitos contracionistas da crise internacional,
as contas públicas e as contas externas se deterioram, amplificando e desequilibrando
os déficits gêmeos. Na sequência, a política econômica se reverte na direção
contracionista. Foi assim nos anos oitenta, nos anos noventa e está sendo
agora.
Não é, todavia, monótono ou repetitivo. Cada
ajuste tem sua própria história para contar. O saldo de benefícios e custos de
cada política anticíclica pode ser avaliado pelos resultados que obteve em promover o
crescimento e pelas transformações estruturais de natureza econômica e social
que realizou versus a herança de desequilíbrios deixada para os governos
subsequentes. A execução do ajuste costuma ser alvo de intensa polêmica e tem
sido, ao longo do tempo, um dos principais temas de enfrentamento das forças
políticas. Como a reversão do cenário externo raramente é suave, tampouco há
aterrizagem confortável, o ajuste é sempre dolorido.
O Consumo e o PIB
O gráfico a seguir apresenta os índices de
crescimento do consumo das famílias e do PIB da economia brasileira entre o
final de 1998 e o segundo trimestre de 2015. Apenas por curiosidade, consta
também a evolução do PIB das sete maiores economias avançadas, o chamado G7,
entre 1998 e 2014. Em todas as séries, o ano base é 1995, com o índice igualado
a 100 e os valores são de quatro trimestres acumulados.
O consumo das famílias cresceu muito pouco no
segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002). Com a crise cambial
de 1998, o país iniciou um forte ajuste do poder de compra interno a partir do
ano seguinte. A mudança na rota da política econômica abrangeu o abandono da
âncora cambial (com a abrupta depreciação da moeda nacional) e a adoção do regime
de metas de inflação, praticando-se juros estratosféricos nos primeiros anos.
Foi um período duro. Nesse segundo mandato, o incremento do consumo das famílias
ficou abaixo mesmo do crescimento do PIB, 6,4% e 9,5%, respectivamente, em quatro
anos. Nos últimos dois anos da gestão, 2001 e 2002, o consumo ficou
praticamente estagnado (crescimento de 1,8%), o que muito concorreu para a
frustração na corrida presidencial do bloco político então no poder e para os
baixos índices alcançados de aprovação com que FHC deixou o governo. Apenas
para comparação, o consumo das famílias cresceu 25,5% no segundo mandato do
presidente Lula (2007-2010), frente à expansão de 19,5% do PIB.
No primeiro ano do Governo Lula (2003), o
consumo das famílias manteve-se estagnado, como resultado da continuidade na
política contracionista. Mas em 2004, o consumo das famílias deu início a um
longo período de crescimento acelerado que não foi interrompido nem mesmo
durante o cataclisma que abalou a economia mundial no final de 2008. A partir
de 2006, a expansão do consumo, alem de sofrer nova aceleração, passou a apresentar taxas mais elevadas do
que as do PIB.
Depois que a crise financeira internacional
foi deflagrada, em setembro de 2008, o incremento do consumo foi fundamental
para sustentar o ciclo expansivo da economia brasileira de forma consistente
até o segundo trimestre de 2011, quando a economia mundial mergulhou novamente na
crise. A partir de então, a política anticíclica começou a mostrar seus
limites, o que foi acentuado em 2013 e 2014.
O ajuste de 2015
A partir de meados de 2011, a taxa de
crescimento do consumo das famílias descolou da trajetória de crescimento do
PIB (Ver Gráfico). A economia brasileira desacelerou fortemente mas o consumo
das famílias continuou se expandindo a taxas muito expressivas, mesmo que
declinantes, até o primeiro trimestre de 2014.
Em 2015, o consumo das famílias caiu por dois
trimestres sucessivos. As medidas de ajustes farão com que os gastos de consumo
continuem declinando nos próximos trimestres e a política econômica atua para que
a queda nesses dispêndios seja mais acentuada do que a do PIB, o que ocorreu
pela primeira vez no atual ciclo descendente, no segundo trimestre. A linha
contínua do gráfico já mostra a curva do consumo se voltando para baixo. É o
início do ajuste, ainda que os resultados fiscais não tenham aparecido.
Fonte: CNT do IBGE para o PIB e o Consumo das
Famílias do Brasil. WEO do FMI para o PIB do G7.
Publicado no Jornal da Cidade, em 20/09/2015
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