Publicado originalmente em abril de 2021.
*Ricardo Lacerda*
O debate econômico atual no
Hemisfério Norte não deixa margem para dúvidas: está em pleno andamento uma
importante virada na compreensão do papel do Estado no desenvolvimento
econômico e social, sintetizada na seguinte ordem do dia: o keynesianismo está de
volta. Após 40 anos de hegemonia sufocante da perspectiva neoliberal, os
reiterados fracassos do sistema de mercados crescentemente desregulados em
cumprir as promessas de promover crescimento econômico sustentado, estável,
inclusivo em termos sociais e expansivo em direção a novas áreas do globo
terrestre exauriram suas possibilidades.
A agonia do sistema de mercados
desregulados começou em 2008, com o estopim da crise financeira que abalou a
economia mundial. Todavia, naquele momento, as lideranças políticas dos países
ricos e os dirigentes das agências multilaterais de desenvolvimento titubearam
em realizar as mudanças necessárias para uma nova etapa de maior regulação da
economia mundial, sucumbindo mais uma vez à ideologia neoliberal e aos
interesses dos detentores da riqueza financeira. Economistas notáveis, como
Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos premiados com o Nobel, apontavam
incansavelmente os fracassos da globalização desregulada em promover
crescimento justo socialmente e sustentado econômica e ambientalmente. Contudo,
suas vozes minoritárias não ultrapassavam os muros das universidades ou dos
movimentos populares mais engajados socialmente.
As insatisfações com o sistema
neoliberal foram se acumulando com a crescente deterioração do mercado de
trabalho nos países centrais, expressa pelo aumento exponencial das relações de
trabalho precarizadas, pelo aumento do número de pessoas em situação de pobreza
e pelo imenso contingente de moradores de rua nos principais centros urbanos
dos países ricos, especialmente no país que simbolizava e liderava ideologicamente
a propagação mundial das políticas neoliberais. O debate sobre as crescentes
desigualdades de renda entre ricos e pobres, emergido dos trabalhos do
economista francês Thomas Piketty, foi essencial para firmar nas mesas
acadêmicas e na mente da população a injustiça crescente do sistema de mercados
desregulados.
Se a crescente insatisfação com a
globalização financeira propiciou a emergência de líderes populistas de extrema
direita em diversos continentes, tendo o presidente norte-americano Donald
Trump como representante maior, esse ciclo político aparentemente começou a se
esgotar.
**Plano Biden**
A manifestação mais consistente e
robusta da virada keynesiana foi, sem sombra de dúvidas, o recente pacote de
estímulos do presidente dos EUA, Joe Biden, que alcançou a notável soma de dois
trilhões de dólares. Antes de sua submissão ao Congresso, o conjunto de medidas
sofreu ataques diversos, com destaque para as incisivas manifestações do
economista Lawrence Summers, exatamente aquele assessor econômico que fez o
então presidente Obama titubear em adotar medidas mais duras de enfrentamento
ao poderio do setor financeiro. Dessa vez, todavia, o recém-empossado
presidente Joe Biden não se deixou impressionar pela mensagem alarmista do
economista de que um pacote tão robusto teria impactos inflacionários
desestabilizadores da economia. A secretária do Tesouro americana, a experiente
economista Janet Yellen, presidente do Banco Central (FED) na administração
Obama, descartou recuar e afirmou sem rodeios que, dessa vez, se o governo
tivesse que errar, seria para mais e não para menos, como aconteceu em 2008.
Até mesmo lideranças do setor
financeiro e de empresas da mídia corporativa, que costumam se alinhar a esse
segmento, reconhecem que o alcance das medidas anunciadas pelo governo Biden
significa uma virada de grande alcance na política econômica. Não apenas
enfrentam os postulados das medidas fiscalistas que colocavam a austeridade
fiscal no altar da sacralidade, mas também desenham um conjunto de linhas de
ação que reposiciona o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social do
país. O Plano Biden contempla investimentos de US$ 750 bilhões em
infraestrutura produtiva, incluindo estradas, ferrovias e transmissão de
energia; US$ 189 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (P&D);
avança em direção ao estímulo a setores industriais considerados estratégicos;
e mais US$ 100 bilhões em infraestrutura de internet de banda larga.
Aproximando-se da plataforma dos ambientalistas, contempla investimentos em
energias renováveis, veículos elétricos e saneamento básico, em uma reviravolta
ambiciosa em termos de atuação do governo na área econômica.
**Efeito demonstração**
O efeito demonstração da
iniciativa norte-americana sobre a gestão econômica dos países ricos e mesmo
dos países em desenvolvimento, como o nosso, deverá ser avassalador, apesar dos
mugidos e do aparente pouco caso de economistas brasileiros vinculados ao
mercado financeiro e de seus porta-vozes na mídia corporativa, como retratado
entre nós no editorial do jornal Folha de São Paulo de 04 de abril de 2021. O
referido editorial, apesar de reconhecer que o megapacote de Biden visa
revigorar o capitalismo dos EUA, vaticina que o Brasil não teria a oportunidade
de seguir caminho similar.
Do ponto de vista brasileiro, a
virada keynesiana que se apresenta no Hemisfério Norte abre uma senda de luta
interna para se contrapor não apenas ao desmonte do Estado promovido pelas
políticas neoliberais, que foi retomado em ritmo acelerado depois do golpe
parlamentar de 2016. A possibilidade aberta pela virada na política econômica
nos EUA vai além disso: cria condições concretas para a construção de um novo
pacto político e social em favor de uma nova etapa de desenvolvimento, com
forte conteúdo desenvolvimentista e de inclusão social, em linha com as novas
demandas da sociedade e de afirmação do país interna e externamente. Essa
afirmação deve contemplar não apenas o desenvolvimento produtivo por meio da
capacitação tecnológica, científica e empresarial, como também a construção de
uma sociedade mais homogênea e menos desigual, em uma nova perspectiva na
relação com os recursos naturais e um aprofundamento interno nas relações
democráticas. Sim, Keynes está de volta na política econômica e social e chegará
ao Brasil. Sim, retornará para a felicidade geral da nação.
*Ricardo Lacerda*
*Integrante da ABED - Associação Brasileira de
Economistas pela Democracia*
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