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quinta-feira, 6 de junho de 2024

**Keynes está de volta, para a felicidade geral**

Publicado originalmente em abril de 2021.

 *Ricardo Lacerda*

 

O debate econômico atual no Hemisfério Norte não deixa margem para dúvidas: está em pleno andamento uma importante virada na compreensão do papel do Estado no desenvolvimento econômico e social, sintetizada na seguinte ordem do dia: o keynesianismo está de volta. Após 40 anos de hegemonia sufocante da perspectiva neoliberal, os reiterados fracassos do sistema de mercados crescentemente desregulados em cumprir as promessas de promover crescimento econômico sustentado, estável, inclusivo em termos sociais e expansivo em direção a novas áreas do globo terrestre exauriram suas possibilidades.

 

A agonia do sistema de mercados desregulados começou em 2008, com o estopim da crise financeira que abalou a economia mundial. Todavia, naquele momento, as lideranças políticas dos países ricos e os dirigentes das agências multilaterais de desenvolvimento titubearam em realizar as mudanças necessárias para uma nova etapa de maior regulação da economia mundial, sucumbindo mais uma vez à ideologia neoliberal e aos interesses dos detentores da riqueza financeira. Economistas notáveis, como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos premiados com o Nobel, apontavam incansavelmente os fracassos da globalização desregulada em promover crescimento justo socialmente e sustentado econômica e ambientalmente. Contudo, suas vozes minoritárias não ultrapassavam os muros das universidades ou dos movimentos populares mais engajados socialmente.

 

As insatisfações com o sistema neoliberal foram se acumulando com a crescente deterioração do mercado de trabalho nos países centrais, expressa pelo aumento exponencial das relações de trabalho precarizadas, pelo aumento do número de pessoas em situação de pobreza e pelo imenso contingente de moradores de rua nos principais centros urbanos dos países ricos, especialmente no país que simbolizava e liderava ideologicamente a propagação mundial das políticas neoliberais. O debate sobre as crescentes desigualdades de renda entre ricos e pobres, emergido dos trabalhos do economista francês Thomas Piketty, foi essencial para firmar nas mesas acadêmicas e na mente da população a injustiça crescente do sistema de mercados desregulados.

 

Se a crescente insatisfação com a globalização financeira propiciou a emergência de líderes populistas de extrema direita em diversos continentes, tendo o presidente norte-americano Donald Trump como representante maior, esse ciclo político aparentemente começou a se esgotar.

 

**Plano Biden**

 

A manifestação mais consistente e robusta da virada keynesiana foi, sem sombra de dúvidas, o recente pacote de estímulos do presidente dos EUA, Joe Biden, que alcançou a notável soma de dois trilhões de dólares. Antes de sua submissão ao Congresso, o conjunto de medidas sofreu ataques diversos, com destaque para as incisivas manifestações do economista Lawrence Summers, exatamente aquele assessor econômico que fez o então presidente Obama titubear em adotar medidas mais duras de enfrentamento ao poderio do setor financeiro. Dessa vez, todavia, o recém-empossado presidente Joe Biden não se deixou impressionar pela mensagem alarmista do economista de que um pacote tão robusto teria impactos inflacionários desestabilizadores da economia. A secretária do Tesouro americana, a experiente economista Janet Yellen, presidente do Banco Central (FED) na administração Obama, descartou recuar e afirmou sem rodeios que, dessa vez, se o governo tivesse que errar, seria para mais e não para menos, como aconteceu em 2008.

 

Até mesmo lideranças do setor financeiro e de empresas da mídia corporativa, que costumam se alinhar a esse segmento, reconhecem que o alcance das medidas anunciadas pelo governo Biden significa uma virada de grande alcance na política econômica. Não apenas enfrentam os postulados das medidas fiscalistas que colocavam a austeridade fiscal no altar da sacralidade, mas também desenham um conjunto de linhas de ação que reposiciona o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social do país. O Plano Biden contempla investimentos de US$ 750 bilhões em infraestrutura produtiva, incluindo estradas, ferrovias e transmissão de energia; US$ 189 bilhões em Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (P&D); avança em direção ao estímulo a setores industriais considerados estratégicos; e mais US$ 100 bilhões em infraestrutura de internet de banda larga. Aproximando-se da plataforma dos ambientalistas, contempla investimentos em energias renováveis, veículos elétricos e saneamento básico, em uma reviravolta ambiciosa em termos de atuação do governo na área econômica.

 

**Efeito demonstração**

 

O efeito demonstração da iniciativa norte-americana sobre a gestão econômica dos países ricos e mesmo dos países em desenvolvimento, como o nosso, deverá ser avassalador, apesar dos mugidos e do aparente pouco caso de economistas brasileiros vinculados ao mercado financeiro e de seus porta-vozes na mídia corporativa, como retratado entre nós no editorial do jornal Folha de São Paulo de 04 de abril de 2021. O referido editorial, apesar de reconhecer que o megapacote de Biden visa revigorar o capitalismo dos EUA, vaticina que o Brasil não teria a oportunidade de seguir caminho similar.

 

Do ponto de vista brasileiro, a virada keynesiana que se apresenta no Hemisfério Norte abre uma senda de luta interna para se contrapor não apenas ao desmonte do Estado promovido pelas políticas neoliberais, que foi retomado em ritmo acelerado depois do golpe parlamentar de 2016. A possibilidade aberta pela virada na política econômica nos EUA vai além disso: cria condições concretas para a construção de um novo pacto político e social em favor de uma nova etapa de desenvolvimento, com forte conteúdo desenvolvimentista e de inclusão social, em linha com as novas demandas da sociedade e de afirmação do país interna e externamente. Essa afirmação deve contemplar não apenas o desenvolvimento produtivo por meio da capacitação tecnológica, científica e empresarial, como também a construção de uma sociedade mais homogênea e menos desigual, em uma nova perspectiva na relação com os recursos naturais e um aprofundamento interno nas relações democráticas. Sim, Keynes está de volta na política econômica e social e chegará ao Brasil. Sim, retornará para a felicidade geral da nação.

 

*Ricardo Lacerda*

 

*Integrante da ABED - Associação Brasileira de Economistas pela Democracia*