Ricardo Lacerda
São inúmeros os episódios registrados pela literatura econômica em
que o elevado fluxo cambial proporcionado pelas exportações de produtos oriundos
de exploração de recursos naturais causa danos à estrutura industrial de um país.
O fenômeno é conhecido como doença holandesa, uma referência à valorização do
florim associada ao crescimento da produção de petróleo no mar do Norte que
derrubou a competitividade da indústria manufatureira nacional nos anos
sessenta.
Nos últimos vinte anos, o Brasil enfrentou dois períodos de maior duração
em que a valorização do câmbio corroeu a competitividade da indústria
manufatureira, em sua capacidade exportadora e principalmente na disputa do
mercado interno com os produtos importados, mas somente a primeira etapa do
segundo deles pode ser caracterizada como doença holandesa.
A primeira vez
O câmbio fixo foi a principal âncora do plano real entre julho de
1994 e o final de 1998. A valorização cambial era um dos principais componentes
da política de estabilização. A corrosão da competitividade da indústria
manufatureira foi generalizada entre os setores e provocou déficits
magnificados no balanço de transações correntes, somente financiados pela
entrada de capital atraído pelas oportunidades de negócios proporcionadas pela
privatização e pelas taxas de juros estratosféricas.
Naquele período, a crise do setor manufatureiro respondia, em
parte, à intenção manifesta da política econômica de expô-lo à competição
externa e, em parte, foi entendida como um preço a pagar, um custo inevitável
para estabilizar os preços internos.
Nesse sentido, a crise manufatureira da segunda metade dos anos
noventa não decorreu de nenhum fenômeno como doença holandesa, mesmo porque o
período foi marcado por cotações rebaixadas nos preços das nossas principais
commodities. O déficit de competitividade foi contrapartida da explosão de
aquisição de importados com preços subsidiados em moeda nacional.
A segunda vez
Depois da crise asiática em 1997, a manutenção do câmbio
valorizado era perceptivelmente insustentável, mas a mudança do regime cambial
somente ocorreu após as eleições gerais de 1998. Em janeiro de 1999,
abandonou-se a âncora cambial e a moeda mudou de patamar.
O impacto positivo no nível de atividade da indústria de
transformação foi imediato, mas a retomada foi amortecida em 2001 e 2002 por
conta do racionamento de energia e da piora do cenário externo com o estouro da
“bolha da internet” e das consequências econômicas do atentado terrorista de
setembro de 2001.
A indústria manufatureira somente iniciou um ciclo de intenso
crescimento a partir de segundo semestre de 2003, que se estendeu até o estouro
da bolha imobiliária norte-americana, em setembro de 2008.
A atividade manufatureira foi duplamente beneficiária na primeira
etapa desse ciclo que perdurou, grosso modo, até meados de 2005: pelo patamar
desvalorizado da moeda nacional, ainda que o real estivesse em acelerada
apreciação, e pela expansão do mercado interno proporcionada pela melhoria dos
termos de trocas de nossas exportações e pelo inicío da abrangente elevação do
nível de renda da população promovida pelas políticas públicas.
A produção industrial se expandiu celeremente, mas a apreciação do
real foi corroendo a sua competitividade. Depois do refluxo do pico alcançado em
2003, em razão da desconfiança com o novo governo, o real iniciou ainda em 2004
um período de intensa valorização que se prolongou até maio de 2011, interrompido
por alguns trimestres na esteira da crise financeira em 2009.
Mesmo com a desvalorização substantiva que se seguiu ao segundo
mergulho da crise financeira internacional em meados de 2011, o real permaneceu
até os dias atuais em patamar muito valorizado, como indica a deterioração recente
das contas comercial e de serviços de não fatores.
O novo período de longa duração com a moeda nacional sobrevalorizada
deu origem a um processo característico de doença holandesa, em que a elevação
nas cotações internacionais de nossas principais commodities provocou perdas
cumulativas de competitividade da indústria manufatureira, tanto no mercado
externo, quanto no mercado interno.
A segunda etapa da
segunda vez
Enquanto o cenário externo se manteve favorável, até o terceiro
trimestre de 2008, a indústrias de transformação brasileira continuou crescendo,
convivendo com a forte apreciação da moeda nacional, ainda que já se
manifestassem os sintomas de perda de competitividade. Depois da eclosão da
crise, todavia, a atividade manufatureira iniciou uma etapa de instabilidade em
torno de uma trajetória de estagnação.
Os gráficos apresentados são autoexplicativos. Eles apresentam a
evolução do índice em doze meses do nível de produção física dos principais
setores manufatureiros brasileiros, igualando a 100 a produção de outubro de
2007 a setembro de 2008.
Poucas são as atividades que apresentaram crescimento robusto no
período, como a indústria de bebidas e a de minerais não metálicos, favorecidas,
respectivamente, pelo crescimento da renda interna e pela expansão da
construção civil.
Algumas atividades apresentaram trajetórias que se assemelham a um
desastre, como têxtil e confecções. Outras apenas pararam de crescer e outras
apresentaram forte instabilidade, como a indústria automobilística. Outras ainda, como aquelas vinculadas à
produção de bens de capital, jamais se recuperaram.
Publicado no Jornal da Cidade, em 15/06/2014
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